domingo, 12 de dezembro de 2021

Lactogestação – é possível amamentar estando grávida? É seguro?

 

Você tem um filho que ainda mama. Não importa a idade. Ele mama e você descobriu que está grávida de novo. E agora? O que fazer? Há risco para o bebê que já nasceu? Há risco para o bebê ainda em formação? Há risco para você? O desmame é necessário?

Nesse texto, vamos conversar um pouco sobre a chamada “lactogestação”, que é o ato de amamentar enquanto grávida de outro bebê. Mitos, evidências científicas, crendices, o que é verdade, o que não é e o que ainda não foi descoberto.

  

Fisiologia da amamentação

Ainda durante a gravidez, o corpo da mulher começa a produzir o colostro como resultado da concentração de quantidades cada vez maiores dos hormônios progesterona, estrogênio e prolactina. A produção de leite (em substituição ao colostro) normalmente somente é ativada com a expulsão da placenta, quando há uma queda brusca na quantidade de progesterona em circulação no sangue da mãe. É aí que entram em ação a prolactina e a ocitocina, em conjunto, para estabelecer a amamentação.  O efeito imediato do bebê ordenhando o seio da mãe é a liberação de prolactina (responsável pela produção do leite) e de ocitocina (responsável pela ejeção do leite).

Pesquisas demonstraram que, quando a amamentação já está estabelecida, por volta do 2º ou 3º mês de idade do bebê, a concentração de prolactina circulando no corpo da mãe diminui consideravelmente, e a ordenha – seja pelo bebê mamando, seja manual, seja com uma bomba – passa a ser essencial para manter a produção, através do estímulo à liberação de prolactina na corrente sanguínea [1].

A ocitocina, conhecida como hormônio do amor, tem papel importante em dois momentos: durante o trabalho de parto, é ela a responsável pelas contrações uterinas que expulsam o bebê pelo canal vaginal e que levam à contração uterina logo após o parto; durante a amamentação, é ela que faz com que o leite, produzido no seio, saia pelos ductos em resposta à ordenha. Além disso, também é secretada quando a mulher tem um orgasmo.

As dúvidas sobre a segurança em manter a amamentação de um bebê ou criança estando grávida começam aí: se o hormônio liberado durante a amamentação é o mesmo hormônio que faz com que os bebês nasçam durante o trabalho de parto, será que não há risco de um trabalho de parto prematuro quando a mãe amamenta grávida?

 

 

Amamentar estando grávida induz um parto prematuro ou aborto?

Há algum tempo foi levantada a hipótese de que a resposta fisiológica de contração do útero ante a presença de ocitocina poderia levar a um aborto. Porém, algumas pesquisas [2] indicaram que mesmo sendo o hormônio responsável pela ejeção do leite, a ocitocina não atinge quantidades tão grandes durante a amamentação quanto atinge durante o trabalho de parto. Isso porque acontece porque, após o parto, a concentração de receptores de ocitocina no útero cai drasticamente e os receptores que permanecem no útero conseguem regular sua reação à presença do hormônio, de forma a evitar contrações indesejadas durante a amamentação. Essa é a chamada “hipótese do útero surdo”, de acordo com a qual somente durante o trabalho de parto e até a saída da placenta o útero contrai em reação à presença da ocitocina [3].

Os estudos existentes até o momento, portanto, indicam que em uma gestação de risco habitual – e é importante lembrar que por mais tranquila que seja a gestação, não há gestação totalmente isenta de risco – amamentar não aumenta a probabilidade de aborto ou parto prematuro [4].

 

Amamentar estando grávida atrapalha o crescimento do feto?

Outro ponto que se costuma comentar é que a amamentação “rouba” os nutrientes que deveriam ser destinados ao feto, atrapalhando seu crescimento intrauterino. Não há comprovação científica dessa afirmação, não tendo sido observadas diferenças significativas no tamanho de bebês cujas mães amamentaram durante a gestação e naqueles cujas mães não amamentaram [5]. Além disso, não foi encontrada até o momento qualquer relação entre a amamentação durante a gravidez e o risco de o bebê nascer pequeno para a idade gestacional (PIG). Existem poucos estudos sobre esse tema e ele precisa ser aprofundado, mas o que se verifica até o momento é que não há correlação entre a lactogestação e um possível baixo peso no bebê [4], considerando também que precisam ser descartadas questões como a alimentação adequada da mãe e outros fatores socioeconômicos que podem ter influência direta sobre essa questão [9].

 

Amamentar estando grávida afeta a quantidade e/ou a qualidade do leite materno que meu filho mais velho está ingerindo?

Quantidade de leite produzido

As pesquisas indicam que pode haver uma redução na produção do leite, devido à ação da progesterona, ainda que o filho mais velho continue mamando frequentemente [6]. É preciso considerar, porém, que não há método confiável de verificar a produção efetiva de leite. Nem a ordenha nem a pesagem do bebê conseguem medir de forma adequada a produção e o cansaço – principalmente quando a mãe amamenta e está grávida – pode levar a uma percepção equivocada de ter havido redução na produção. Além disso, cerca de 30% das mães afirmam não terem observado qualquer alteração [7].

Outro fator a ponderar é que o aumento na circulação de progesterona durante a gravidez pode levar a uma redução no reflexo de ejeção, mas isso tende a deixar de acontecer conforme se aproxima o final da gravidez [8].

Mesmo na hipótese de ocorrer uma redução efetiva na produção de leite, o desmame não é necessário, bastando avaliar a necessidade de complementar a mamada com leite ordenhado da própria mãe (caso ela tenha em estoque) ou com leite artificial. Nessa avaliação deve ser observado, dentre outros fatores, a idade do bebê, se ele possui outras fontes de alimento e, ainda, a oferta através de métodos seguros, para evitar a confusão de bicos.

 

Qualidade do leite

Não há pesquisas conclusivas sobre a alteração na qualidade do leite produzido. Comparando-se bebês cujas mães amamentaram e bebês cujas mães não amamentaram durante a gestação não foram observadas diferenças significativas entre os dois grupos [9]. Além disso, tais pesquisas não consideraram fatores como o uso de bicos artificiais ou a existência ou não de livre demanda. Por isso, até o momento é seguro concluir que a qualidade do leite não é significativamente alterada. Além disso, é preciso lembrar que o leite é um líquido vivo e sua composição pode variar a depender da necessidade do bebê.

Foi observado que o leite pode parecer mais salgado durante o primeiro trimestre da gestação[10], fato confirmado pelo relato de bebês que já se comunicavam com as mães, mas não se preocupe, isso não afeta a qualidade do leite.

 

Há um aumento na quantidade de hormônios em circulação no corpo da mãe durante a gravidez. Isso pode prejudicar o meu filho mais velho?

Recentemente foi questionada a possibilidade de a quantidade de hormônios em circulação no corpo da gestante levar a uma maior concentração desses hormônios no leite, o que poderia prejudicar o filho mais velho [11].

Essa exposição não foi considerada importante, uma vez que o bebê que mama está menos exposto a essa carga hormonal do que o bebê dentro do útero, que recebe esses hormônios através do cordão umbilical.

  

Riscos de amamentar durante a gestação: mito ou evidência científica?

Não existem até o momento bases científicas sólidas [4] atribuindo à amamentação durante a gestação possíveis consequências negativas, seja em relação à saúde da mulher, seja em relação ao desenvolvimento do embrião/feto/bebê ou do filho que mama.

 

As pesquisas não concluíram que amamentar na gravidez é prejudicial

Todas as pesquisas buscaram identificar riscos na continuidade da amamentação (ou seja, reafirmar a ideia de que a amamentação durante a gravidez traz prejuízos). Os riscos documentados parecem estar mais relacionados a uma alimentação inadequada da gestante que amamenta e do filho mais velho do que propriamente ao fato de amamentar estando grávida [12]. Além disso, não conseguiram excluir fatores como condição socioeconômica da família, idade da criança e mesmo a forma como um eventual desmame foi conduzido [4].

Embora esse tenha sido o foco dos pesquisadores, nenhum deles conseguiu relacionar a amamentação a um desfecho negativo na gestação.

Logo, não há evidências científicas para sustentar o desmame como regra

Baseado no que se tem de conhecimento científico atualmente, não há evidência para sustentar que, em se tratando de uma gravidez de risco habitual, as mulheres correm maior risco de abortar ou de ter um parto prematuro se continuarem amamentando enquanto grávidas. Também é pouco provável que a amamentação por si só leve a uma restrição significativa no crescimento intrauterino, principalmente em se tratando de mulheres saudáveis e que tenham uma alimentação adequada.

Mesmo em situações extremas, o desmame NÃO É garantia de sucesso

Em casos extremos, o profissional de saúde pode entender adequado conversar com a gestante sobre o desmame do bebê mais velho. As principais causas de desmame indicadas pelos profissionais de saúde costumam ser [4]: (i) alguma síndrome ou doença materna que afete a absorção de nutrientes pela mãe e que, por isso, tenha influência sobre a continuidade da amamentação durante a gravidez; (ii) restrição de crescimento intrauterino severo observado durante a gravidez; ou (iii) mulheres com histórico de aborto ou parto prematuro anterior.

Mesmo nesses casos, porém, é importante destacar que NÃO HÁ EVIDÊNCIA CIENTÍFICA de que interromper a amamentação reduz o risco envolvido, ou seja, não há como afirmar que o desmame trará segurança à gestação.

  

O risco é um mito. E aí? Amamentar ou não?

Conforme visto, não há evidência científica de que a amamentação durante a gravidez influencie de qualquer forma o resultado, ou seja, não há evidência de que o desmame seja garantia para que a gravidez ocorra bem e não haja um desfecho indesejado, seja um aborto, seja um parto prematuro.

Em se tratando de gravidez de risco não habitual, ou seja, em se tratando de mulheres que possuem histórico de aborto ou parto prematuro ou que por algum motivo podem vir a ter parto prematuro, também não há evidência sustentando o desmame, mesmo que o médico sugira o desmame na tentativa de levar a gestação até o final.

Qualquer que seja o seu caso, qualquer que seja a orientação do médico que te acompanha, saiba que a decisão deve ser sua – e não dele – e que se ele afirmar categoricamente que o desmame é garantia de sucesso na gestação ou que não desmamar aumentará o risco da gravidez, ele está fazendo tal afirmação sem qualquer base científica. Será apenas um palpite.

Recomenda-se, como regra geral, observar a alimentação, uma vez que tanto a gestação quanto a amamentação causam estresse adicional para o organismo da mãe [13]. Esse cuidado independe de a mãe estar grávida E amamentando: ainda que ela esteja apenas grávida ou apenas amamentando é importante, tanto quanto possível, manter uma alimentação balanceada e saudável.

  

E as outras pessoas?

Amamentar durante a gravidez ainda é um tabu, sustentado muito mais por crenças pessoais – inclusive de profissionais de saúde – que por evidências científicas. É comum que as lactogestantes ouçam que estão prejudicando o filho mais velho, que o bebê não vai se desenvolver adequadamente ou que haverá aborto ou parto prematuro.

Por esse motivo, considere a possibilidade de não comentar com todos que você amamenta seu filho mais velho. Não recomendamos omitir essa informação do profissional de saúde que te acompanha, mas tente encontrar um profissional que, além de apoiar a amamentação, esteja atualizado com as pesquisas científicas.

  

Referências:

[1] Czank C, Henderson JJ, Kent JC, Lai CT, Hartmann PE. Hormonal control of the lactation cycle. In: Hale TW, Hartmann PE, eds. Textbook of Human Lactation. Amarillo, TX: Hale Publishing LP; 2007:89-111.

Cox DB, Owens RA, Hartmann PE. Blood and milk prolactin and the rate of milk synthesis in women. Exp Physiol. 1996;81(6):1007-1020.

Noel GL, Suh HK, Frantz AG. Prolactin release during nursing and breast stimulation in postpartum and nonpostpartum subjects. J Clin Endocrinol Metab. 1974;38(3):413-423.

 

[2] Leake RD, Waters CB, Rubin RT, Buster JE, Fisher DA. Oxytocin and prolactin responses in long-term breast-feeding. Obstet Gynecol. 1983;62(5):565-568.

 

[3] Gimpl G, Fahrenholz F. The oxytocin receptor system: structure, function, and regulation. Physiol Rev. 2001;81(2):629-683.

 

[4] Cetin I, Assandro P, Massari M, Sagone A, Gennaretti R, Donzelli G, Knowles A, Monasta L, Davanzo R. Breastfeeding during pregnancy: position paper of the Italian Society of Perinatal Medicine and the Task Force on Breastfeeding, Ministry of Health, Italy. J Hum Lact. 2014 Feb;30(1):20-7.

 

[5] Merchant K, Martorell R, Haas J. Maternal and fetal responses to the stresses of lactation concurrent with pregnancy and of short recuperative intervals. Am J Clin Nutr. 1990;52(2):280-288.

Merchant K, Martorell R, Haas JD. Consequences for maternal nutrition of reproductive stress across consecutive pregnancies. Am J Clin Nutr. 1990;52(4):616-620.

Pareja RG, Marquis GS, Penny ME, Dixon PM. A case-control study to examine the association between breastfeeding during late pregnancy and risk of a small-for-gestational age birth in Lima, Peru [published online October 1, 2012]. Matern Child Nutr. doi:10.1111/mcn.12000.

 

[6] Prosser GC, Saint L, Hartmann PE. Mammary gland functions during gradual weaning and early gestation in women. Aust J Exp Biol Med Sci. 1984;62(Pt 2):215-228.

 

[7] Moscone SR, Moore MJ. Breastfeeding during pregnancy. J Hum Lact. 1993;9(2):83-88.

 

[8] Amico JA, Finley BE. Breast stimulation in cycling women, pregnant women and a woman with induced lactation: pattern of release of oxytocin, prolactin and luteinizing hormone. Clin Endocrinol (Oxf). 1986;25(2):97-106.

Marquis GS, Penny ME, Zimmer JP, Díaz JM, Marín RM. An overlap of breastfeeding during late pregnancy is associated with subsequent changes in colostrum composition and morbidity rates among Peruvian infants and their mothers. J Nutr. 2003;133(8):2585-2591.

Grazzini E, Guillon G, Mouillac B, Zingg HH. Inhibition of oxytocin receptor function by direct binding of progesterone. Nature. 1998;392(6675):509-512.

Amico JA, Finley BE. Breast stimulation in cycling women, pregnant women and a woman with induced lactation: pattern of release of oxytocin, prolactin and luteinizing hormone. Clin Endocrinol (Oxf). 1986;25(2):97-106.

 

[9] Marquis GS, Penny ME, Diaz JM, Marín RM. Postpartum consequences of an overlap of breastfeeding and pregnancy: reduced breast milk intake and growth during early infancy. Pediatrics. 2002;109(4):e56.

 

[10] Prosser GC, Saint L, Hartmann PE. Mammary gland functions during gradual weaning and early gestation in women. Aust J Exp Biol Med Sci. 1984;62(Pt 2):215-228.

 

[11] Mohrbacher N. Breastfeeding Answers Made Simple: A Guide for Helping Mothers. Amarillo, TX: Hale Publishing; 2010.

 

[12] Marquis GS, Penny ME, Zimmer JP, Díaz JM, Marín RM. An overlap _________.

 Bøhler E, Bergström S. Child growth during weaning depends on whether mother is pregnant again. J Trop Pediatr. 1996;42(2):104-109.

 

[13] Merchant K, Martorell R, Haas J. Maternal and fetal _________.

 

[14] López-Fernández G, Barrios M, Goberna-Tricas J, Gómez-Benito J. Breastfeeding during pregnancy: A systematic review.

 

  

Outras referências:

 

Ishii H. Does breastfeeding induce spontaneous abortion? J. Obstet. Gynaecol. 2009;35(5):864-868.

 

La Leche League International. Breastfeeding during pregnancy. In: The Breastfeeding Answer Book. Revised edn. Schaumburg: La Leche League International, 2003; 334.