Introdução de outros alimentos durante a amamentação altera o paladar e aumenta o risco de obesidade
Ricardo Zorzetto
Edição Impressa 179 - Janeiro 2011
Os pais têm uma oportunidade rara de influenciar o desenvolvimento dos filhos e de ajudá-los a se tornarem adultos mais saudáveis. Mas é preciso estar atento e agir rápido. Essa chance surge cedo e dura pouco. Começa na concepção e segue por apenas mil dias – os 270 da gestação mais os 730 dos dois primeiros anos de vida. Em princípio, a possibilidade de fazer uma criança que nasce com boa saúde crescer desse modo e assim permanecer por décadas exige a adoção de medidas aparentemente simples: oferecer proteção e aconchego ao bebê e alimentá-lo adequadamente. A alimentação apropriada inclui uma dieta equilibrada da mãe na gravidez, o aleitamento materno exclusivo nos seis primeiros meses de vida e, a partir daí, a amamentação acompanhada de água, sucos, chás, papinhas e alimentos sólidos ricos em proteínas, vitaminas e sais minerais, como recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A receita não é nova, mas pode evitar problemas graves de saúde mais tarde. Experimentos com roedores indicam que a substituição do leite materno por outros alimentos – outros tipos de leite, inclusive – nessa fase do desenvolvimento altera o paladar e instala no organismo um desequilíbrio hormonal que pode durar a vida toda e favorecer o ganho de peso. Já a nutrição correta reduz o risco de desenvolver na idade adulta obesidade e doenças cardiovasculares, atestam estudos populacionais conduzidos em cinco países em desenvolvimento (Brasil, África do Sul, Guatemala, Filipinas e Índia). Ainda segundo esses trabalhos, o aleitamento exclusivo favorece o desempenho intelectual.
Por algumas décadas equipes desses países, entre elas a do epidemiologista brasileiro César Victora, avaliaram regularmente o crescimento de 10.912 crianças. Aquelas que começaram a receber outros alimentos antes dos 6 meses de idade – o que ocorreu antes do terceiro mês com 69% dos bebês da amostra brasileira – acumularam mais gordura corporal ao longo da vida. E quanto mais cedo consumiam papinhas, sucos e outros tipos de leite mais gordura concentravam, o que eleva o risco de problemas no coração e de acidente vascular cerebral, responsáveis por 30% das mortes no mundo, relataram os pesquisadores em setembro no International Journal of Epidemiology. “O que mais influenciou o acúmulo de gordura não foi a duração do aleitamento, mas a precocidade da introdução de outros alimentos na dieta da criança”, afirma Victora, professor da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, e da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
Há quase 30 anos Victora, Fernando Barros e uma equipe de epidemiologistas acompanham periodicamente a saúde de todas as crianças nascidas em 1982, 1993 e 2004 em Pelotas, município de 330 mil habitantes no extremo sul do país. Esse seguimento de longo prazo, conhecido como coorte, levou Victora e colaboradores de outros países a rever anos atrás o padrão adequado de desenvolvimento até os 5 anos de idade e a propor uma nova curva de crescimento, reconhecida pela OMS em 2006 e adotada por pediatras de mais de 100 países.
As coortes feitas em Pelotas e em outras regiões do mundo mostraram que as crianças que só recebiam leite materno até o sexto mês de vida cresciam em ritmo diferente das que tomavam mamadeira. Bebês que só mamaram ao peito ganharam peso e ficaram mais altos mais rapidamente nos quatro primeiros meses de vida. Depois se desenvolveram mais devagar. “São crianças saudáveis, mas mais magras”, afirma Victora. Já as que receberam leite em pó e outras formulações que tentam imitar o leite humano engordaram mais rapidamente a partir do segundo semestre após o nascimento.
Uma possível explicação para o crescimento acelerado tardio é o consumo de mais calorias que o recomendado. Marina Rea, do Instituto de Saúde (IS) de São Paulo, e Ana Maria Corrêa, da Universidade Estadual de Campinas, verificaram anos atrás que as crianças que recebiam mamadeiras e outros alimentos nos primeiros meses de vida consumiam até 50% mais calorias que o ideal (ver Pesquisa FAPESP nº 123).
“Nunca é demais repetir: o leite materno é o único alimento de que a criança precisa nos primeiros seis meses”, diz Victora. Mais rico em açúcares e gorduras do que o leite de vaca, o leite humano contém ainda níveis adequados de proteínas e outros nutrientes para o bebê, além de mais de uma centena de compostos imunologicamente ativos.
Mesmo assim, não é fácil seguir a indicação da OMS. A participação maior das mulheres no mercado de trabalho, aliada à desinformação sobre como e por quanto tempo amamentar, contribui para que a dieta das crianças mude antes da hora. “Além disso”, conta Victora, “muitos médicos não respeitam a orientação da OMS e introduzem cedo na dieta alimentos desnecessários nessa fase da vida”.
O resultado é que a proporção de mulheres que amamentam exclusivamente ao peito por seis meses no Brasil é baixa, comparada à de outros países. Mas mais alta que a de 10 anos atrás. Hoje 51% das mães alimentam os filhos exclusivamente ao peito nos quatro primeiros meses de vida – eram 36% em 1999 – e 41% amamentam até o sexto mês, segundo levantamento do Ministério da Saúde coordenado pela pediatra Sonia Venancio, do IS. Ainda aquém do desejável, esse índice melhorou muito. Em 1974 metade das crianças recebia só leite materno por 2,5 meses. Esse tempo passou para 14 meses em 2006.
Sonia avaliou dados de 2008 de 34,4 mil crianças de todas as capitais e do Distrito Federal e notou que, apesar da melhora recente, a evolução é lenta. No primeiro mês após o parto 18% dos bebês já tomavam outros líquidos e aos dois meses metade não mamava só ao peito. “Há muito a fazer”, comenta Sonia, que publicou os dados em meados do ano no Jornal de Pediatria.
Os benefícios da alimentação adequada no início da vida não são apenas físicos. Em outro estudo, publicado em fevereiro no Journal of Nutrition, Victora e colaboradores analisaram o desempenho escolar de 7.945 crianças da Índia, da Guatemala, das Filipinas, do Brasil e da África do Sul. As que apresentaram crescimento saudável na gestação, indicador de dieta materna adequada, e nasceram com peso superior ao da média tiveram mais chance de sucesso. Cada 500 gramas a mais de peso ao nascer representaram 2,5 meses a mais de escolaridade na vida adulta e risco 8% menor de repetir uma série. Mesmo as crianças que no parto tinham menos de 2,5 quilos, peso inferior ao desejável, conseguiram bom desenvolvimento intelectual quando, com dieta adequada, alcançaram o ritmo normal de crescimento e recuperaram o peso ideal para a idade até o segundo ano de vida. Nesse período, elas ganharam em média 9 quilos, e cada 700 gramas que cresceram além da média significaram cinco meses a mais de escolaridade.
“Nos dois primeiros anos a criança ainda tem oportunidade de crescer acima da média e se tornar um adulto saudável se, além da amamentação adequada, receber imunização e boa assistência à saúde”, diz o epidemiologista. Nessa fase crucial do desenvolvimento, que Victora chama de “mil dias de oportunidade”, os órgãos ainda se encontram em formação: os ossos estão se alongando, os músculos se fortalecendo e o cérebro ganhando volume (atinge 70% do tamanho final no segundo ano). “A partir do terceiro ano, o crescimento acelerado acarreta o acúmulo de gordura”, explica.
As mudanças que os epidemiologistas observam usando balanças e fitas métricas começam a ganhar uma explicação fisiológica. Experimentos com roedores vêm ajudando a descortinar os mecanismos bioquímicos pelos quais a introdução de outros alimentos no período de amamentação exclusiva leva ao acúmulo de gordura.
Um deles é a mudança no paladar. Em pesquisa orientada por Raul Manhães de Castro e Sandra Lopes de Souza, da Universidade Federal de Pernambuco, a nutricionista Lisiane dos Santos Oliveira interrompeu a amamentação de um grupo de ratos separando-os da mãe no 15o dia após o nascimento, o equivalente a três meses de vida de um bebê humano, e os deixou comer ração à vontade. Periodicamente, os animais foram pesados e o consumo alimentar foi medido, mas não houve diferença de peso nem de ingestão entre os desmamados cedo e os que receberam leite até o 30o dia de vida.
O contraste só apareceu em um teste de preferência alimentar. Assim que os animais atingiram a idade adulta, os pesquisadores deixaram, simultaneamente, duas dietas distintas à disposição dos ratos por alguns dias: a ração padrão do biotério e outra mais palatável (à base de chocolate e avelã), mais calórica e rica em gorduras. Os dois grupos preferiram a dieta mais saborosa à ração comum. Mas os ratos que pararam de mamar antes comeram bem mais, relatam os pesquisadores em artigo a ser publicado na Behavioural Processes. “Embora não houvesse mudança no peso nem no padrão diário de alimentação dos animais, a preferência por uma dieta mais calórica se manifestou assim que esse tipo de alimento se tornou disponível”, comenta Lisiane. “No longo prazo a preferência por alimentos com alta densidade calórica pode levar a distúrbios metabólicos”, diz a nutricionista.
Outro teste feito pelo grupo de Pernambuco mostrou que os ratos desmamados aos 15 dias, quando adultos, demoravam o dobro do tempo para se saciar. Após breve jejum, eles comiam continuamente por 42 minutos, enquanto os animais que receberam leite materno até o 30o dia davam-se por satisfeitos em 23 minutos. Segundo o trabalho, que será veiculado pela mesma revista, os roedores desmamados cedo apresentaram ainda alterações no padrão diário (circadiano) de consumo de alimentos: comiam mais em momentos do dia ou da noite diferentes daqueles em que os ratos amamentados por mais tempo se nutriam, embora o total fosse semelhante.
Por trás das alterações de comportamento há mudanças hormonais e metabólicas. Em trabalhos apresentados nos últimos anos no Journal of Endocrinology e no Journal of Physiology, a equipe do endocrinologista Egberto Gaspar de Moura, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mostrou que o desmame precoce altera a composição corporal e reduz a sensibilidade ao hormônio leptina, que induz à saciedade e à puberdade (leia texto na página 3).
Adotando um modelo experimental diferente do anterior, o grupo do Rio provocou o desmame antecipado aplicando na rata um composto que impede a produção de prolactina, hormônio que induz a secreção do leite, em vez de tirar os filhotes de perto da mãe. Os animais que desmamaram mais cedo chegaram à idade adulta com peso 10% maior, 40% mais gordura total e até 300% mais gordura visceral (que se forma no interior dos órgãos e é mais nociva). Confirmando o efeito deletério da obesidade visceral, os roedores desmamados antes do tempo tinham níveis sanguíneos mais altos de glicose, colesterol e triglicerídeos e taxas menores de HDL, proteína que retira o colesterol do sangue e evita a formação de placas de gordura nos vasos. Reunidas, essas alterações configuram o que os médicos chamam de síndrome metabólica, condição que potencializa o risco de desenvolver diabetes e problemas cardiovasculares.
Os animais que mamaram menos, quando adultos, também apresentavam níveis sanguíneos de leptina três vezes superior ao normal, observou a equipe do Rio. Apesar da quantidade brutal desse hormônio, que é produzido pelas células de gordura e indica ao corpo a hora de parar de comer, a leptina não produzia efeito nesses animais. Após jejum de 12 horas, os pesquisadores deram leptina a dois grupos de ratos: um amamentado pelo tempo habitual e outro cujo aleitamento fora interrompido. Os roedores do primeiro grupo, como esperado, comeram menos, mas os do segundo seguiram se alimentando – sinal de que não respondiam ao hormônio.
Moura observou ainda outro desequilíbrio hormonal: os ratos desmamados precocemente desenvolveram hipotireoidismo. Eles apresentavam níveis sanguíneos 50% mais baixos do hormônio tireotropina, que ativa a glândula tireoide, produtora de hormônios que estimulam o consumo de energia. Segundo o endocrinologista, o hipotireoidismo pode ser consequência da resistência à leptina. Como a leptina age numa região do cérebro chamada hipotálamo, que comanda a produção de outros hormônios (entre eles a tireotropina), a insensibilidade à leptina pode afetar o funcionamento da tireoide. “Aparentemente essa alteração hormonal e metabólica é um fenômeno de programação epigenética [alteração no funcionamento dos genes]”, diz Moura. Mas ainda é preciso comprovar.
Enquanto não se descobre o que dispara essas alterações e como as controlar de modo eficiente, o melhor é prevenir o problema por meio do aleitamento exclusivo por ao menos seis meses. Em Recife, a equipe da pediatra Sonia Coutinho mostrou que é possível estimular as mães a amamentarem por mais tempo adotando ações baratas, como o treinamento de profissionais da saúde, em especial os agentes comunitários do Programa de Saúde da Família, para orientá-las (ver Pesquisa FAPESP nº 119).
Na Universidade de São Paulo, uma equipe do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) tem uma proposta mais ousada, que não previne as alterações metabólicas associadas ao desmame precoce, mas pode amenizar os problemas de saúde por elas provocados. A sugestão é melhorar a dieta do brasileiro incentivando o consumo de frutas, verduras e legumes, que atualmente é inferior a um quarto do recomendado. Uma das razões do baixo consumo é o preço elevado. Rafael Claro, do Nupens, calculou quanto custaria para as pessoas consumir a quantidade indicada desses alimentos, que deveria corresponder a 12% do total de calorias ingeridas. Como resultado, a dieta ficaria 30% mais cara.
Mas, com redução no preço, mesmo os mais pobres poriam mais vegetais no prato. Em 2007, durante alguns meses, a equipe do Nupens montou no Grajaú, um dos bairros mais pobres da cidade de São Paulo, um ponto que vendia frutas e hortaliças por um preço subsidiado. Como se imaginava, o consumo desses produtos aumentou. “O custo desses alimentos é uma barreira importante ao consumo”, afirma Claro. Como saída, ele propõe que o Estado reduza os impostos sobre esses alimentos e sobretaxe os ultraprocessados, que contêm conservantes, corantes e estabilizantes, além de mais açúcar, gordura e sal. “O dinheiro que o Estado deixaria de recolher”, diz, “seria economizado com a redução em tratamentos de saúde”.
Puberdade antecipada
Ação do hormônio leptina em região do hipotálamo desencadeia o amadurecimento sexual
A neurocientista brasileira Carol Elias deu um passo para desvendar um fenômeno que alarma os médicos norte-americanos: a antecipação da puberdade feminina. Carol e equipe identificaram a região cerebral em que o hormônio leptina age e desperta o amadurecimento sexual. É o núcleo pré-mamilar ventral.
Anos atrás surgiram pistas de que a leptina, secretada por células de gordura e conhecida por reduzir a fome, induzia o desenvolvimento dos órgãos sexuais e a fertilidade. Sem leptina, camundongos e seres humanos não passavam pelas transformações fisiológicas que preparam o corpo para procriar.
Quando esteve na Universidade Harvard, Carol, hoje pesquisadora da Universidade do Texas, ajudou a identificar as regiões cerebrais que produzem receptores de leptina, proteínas às quais o hormônio se liga e estimula o funcionamento dos neurônios. Entre as regiões do hipotálamo que expressam esses receptores, chamou a atenção o núcleo pré-mamilar ventral (NPV), grupo de células que se conecta a uma área cerebral que produz hormônios sexuais.
Mas comprovar que a ação da leptina no NPV induzia a puberdade demorou. Convidada a integrar a equipe de Joel Elmquist no Texas, Carol e os pesquisadores José Donato Júnior, Roberta Cravo e Renata Frazão desenvolveram camundongos geneticamente alterados para, em certas condições, produzir receptor de leptina só nesse núcleo. Segundo artigo publicado em dezembro no Journal of Clinical Investigation, fêmeas inférteis entraram na puberdade com o estímulo da produção desse receptor no NPV.
Há uma explicação: os neurônios desse núcleo acionam células secretoras do hormônio liberador de gonadotrofinas que, por sua vez, ativa a liberação de hormônios sexuais. Esse efeito ajuda a entender por que há mais meninas com 7 e 8 anos de idade na puberdade nos Estados Unidos. “É possível que as taxas mais elevadas de leptina nas crianças obesas estejam estimulando regiões cerebrais que normalmente só seriam ativadas mais tarde”, diz Carol.
> Artigos científicos
1. VICTORA, C.G.; et al. Maternal and child undernutrition: consequences for adult health and human capital. Lancet. v. 371(9.609), p. 340-57. 26 jan. 2008.
2. DE MOURA, E.G. et al. Maternal prolactin inhibition during lactation programs for metabolic syndrome in adult progeny. Journal of Physiology. v. 587(20), p. 4.919-29. 15 out. 2009.
3. OLIVEIRA, L. S. et al. Early weaning programs rats to have a dietary preference for fat and palatable foods in adulthood. Behavioural Processes. No prelo.