Por Luciana Freitas
Prezado Doutor,
Sou profunda admiradora do seu trabalho, da sua história em defesa da amamentação, dos seus textos. Sou sua fã. De verdade.
No
entanto, não posso esconder a profunda tristeza que sinto ao ler o que
você já disse, mais de uma vez, sobre ter recomendado desmame de bebês
com alergia às proteínas do leite de vaca (APLV). Me dá uma tristeza, um
desânimo... Só eu sei... Eu vou te pedir uma coisa, doutor: repense. Eu
sei o tamanho do meu atrevimento ao dizer isso. Já não sou profissional
de saúde, sou uma mãe. Uma mãe APLV, ou melhor, ex-APLV, pois meu filho
está curado há mais de um ano. Não pense que não me coloco no seu
lugar, porque me coloco. Eu sou pesquisadora, embora não tenha, na minha
área, o peso que você tem na pediatria. O que ocorreria se um leigo
viesse me pedir para repensar algo sobre a minha especialidade? Não sei.
Talvez não gostasse. Talvez repensasse. Realmente não sei.
Se
o estímulo ao desmame é enorme entre crianças saudáveis, é maior ainda
entre crianças APLV. Imagino que muitas tenham passado pelo seu
consultório, não tenho ideia de quantas. Sei que sua experiência é
enorme, mas eu gostaria de falar um pouco da minha e peço, por favor,
que leia o longo texto que escreverei.
Eu tenho contato
com centenas de mães com filhos APLV. Sim, centenas. Temos, há alguns
anos, um grupo virtual de apoio às mães. Para ser mais exata, hoje somos
1691* mães. Muitas delas nunca nos relataram suas experiências, é
verdade. Mas muitas outras, pelo menos a metade, participa ativamente do
nosso grupo. Temos de tudo: mães ricas e mães pobres; mães muito bem
informadas e mães pouco informadas; mães que querem amamentar e mães que
não querem amamentar; mães que pagam 800 reais por uma consulta médica e
mães que mal podem pagar o ônibus até o posto de saúde. Nosso objetivo?
Apoio mútuo e informação.
Aprendi algumas coisas ao longo
desse tempo. Muitas delas, aprendi estudando. Como tenho acesso a todos
os periódicos pela minha universidade, eu leio bastante sobre APLV (e
sobre amamentação também). No entanto, aprendi muito mais com as outras
mães. Muito mais mesmo!
Não preciso dizer o que aprendi
estudando, porque isso você já sabe. Prefiro contar o que eu aprendi com
as mães, que passo a relatar abaixo:
1) Por melhor que
seja o pediatra, APLV requer acompanhamento de um bom especialista. Na
maioria dos casos, a melhor opção é um gastro. O problema é,
infelizmente, encontrar um que entenda bem do assunto e, mais ainda, que
apóie a manutenção da amamentação, se esse for o desejo da mãe. Eu,
sinceramente, depois de tudo o que já vi e ouvi, só entregaria meu filho
APLV aos cuidados de três médicos: César Junqueira e Sheila Pércope,
ambos da UFRJ, e uma jovem médica pediatra de São Paulo, Barbara Seabra,
mãe APLV, que humildemente foi buscar informação e apoio no nosso grupo
quando se viu com seu próprio bebê alérgico a leite; Hoje ela entende
muito do assunto, embora não seja gastro. Deve haver mais médicos que
entendam da APLV e que apoiem a amamentação. Eu desejo demais que haja,
mas eu não conheço. Sei de mães que cruzaram o país e uma que cruzou o
Atlântico para vir se consultar com esses médicos.
2) Por
melhor que seja o gastro, mesmo os que eu citei e que são da minha maior
confiança, quem entende de dieta é a mãe. Deixando de lado casos de
erros absurdos, como médico que manda a mãe tomar leite sem lactose ou
leite de cabra (que acontecem muito mais do que deveria, veja este
artigo: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-05822007000200002&lng=en&nrm=iss),
o fato é que profissionais de saúde não têm como saber, excetuando-se o
óbvio, o que tem e o que não tem leite, soja ou qualquer outro
ingrediente. Nem eu sei mais. Meu filho está curado há mais de um ano e
eu já estou desatualizada quanto a isso, porque não leio mais rótulos,
não ligo mais para SACs. Já vi um caso gravíssimo de alergia, criança
tratada em um dos mais importantes hospitais de São Paulo e sabe o que
aconteceu? A nutricionista, com aval do pediatra, mandou colocar uma
determinada marca de maltodextrina, que tem traços de leite, na fórmula
de aminoácidos! A mãe confiou, não leu o rótulo e o resultado foi
lamentável. Teria muitos exemplos semelhantes para dar.
3)
Conheço dezenas de mães que, como eu, fizeram meses ou anos de dieta
rigorosíssima. Eu fiz 15 meses de carne e 23 meses de leite (incluindo
traços), cítricos e oleaginosas. Conheço várias que fizeram leite, soja e
carne; outras que fizeram dietas ainda mais rigorosas, pois precisaram
excluir ovo, glúten, frutas. Conheci até mesmo uma que passou meses com
arroz e fórmula de aminoácidos. Sim, ela preferiu tomar a fórmula
especial para poder amamentar seu filho! Eu acho que não aguentaria, mas
ela aguentou. Cada um sabe seu limite, não é? Eu fiz a dieta sem
dificuldade. Nunca sofri. As pessoas sofriam por mim, eu não sofria. Sei
que há mães que sofrem, umas mais, outras menos. No entanto, ninguém
pode decidir pela mãe se o sofrimento dela vai ser grande ou pequeno, se
ela vai fazer a dieta direito ou não, se ela vai ou não vai aguentar.
Isso só ELA pode saber. Eu ouvi de uma nutricionista que eu não iria
aguentar e que meu leite não seria suficiente. Eu ri. Ainda bem. Porque
eu poderia ter acreditado nela, mas mas eu preferi acreditar em mim!
Minha vontade, quando meu filho fez dois anos sem nenhum tipo de leite
exceto o meu, um touro com quase 15kg e 95 cm, embora ainda APLV, era
voltar lá, para mostrar a ela a nossa “desnutrição”. Essas dezenas de
mães, doutor, estão todas saudáveis. Nenhuma ficou desnutrida. Nenhuma.
Nem aquelas que tinham dietas extremamente restritas. Eu me alimentava
perfeitamente: no café da manhã e no lanche, pães caseiros, azeite, uma
marca permitida de margarina, sucos, bolos caseiros sem leite, até pão
de queijo sem queijo existe! No almoço e no jantar, arroz, feijão, aves
(frango, pato, peru, avestruz), rã, coelho, ovos, todos os legumes e
verduras. Isso desnutre alguém? Pois eu sequer perdi peso, e olha que ia
ficar bem feliz se acontecesse! Meus exames foram excelentes durante
todo o período, até melhores do que são agora, com colesterol e
triglicéridos mais baixos. Algumas mães suplementam ferro e cálcio, mas
eu confesso que não tive paciência para isso. E não tem tantos
vegetarianos e veganos hoje em dia? Eles ficam desnutridos?
4)
A dieta não é de simples manejo, mas também não é um
bicho-de-sete-cabeças quando a mãe se sente apoiada e informada. Temos
centenas de receitas no nosso grupo. De tudo o que você puder imaginar:
bolos, brigadeiros, salgadinhos, tudo mesmo! Muitos deles sem leite,
soja, ovo, carne e glúten. Eu sou um zero à esquerda na cozinha, mas
botei a mão na massa, literalmente. Eu sou impaciente, mas aprendi a
passar horas para fazer compras no supermercado, para ler todos os
rótulos minúsculos e infames.
5) Meu filho tinha sangue
nas fezes. Sangue MESMO, fralda cheia, visível. Nada de raios, não.
Outra criança teve 10 meses de sangue oculto positivo. Outras mais tempo
que isso. Casos graves, mas que foram acompanhados por médicos que
acreditam que o poder de cura do leite materno é superior a qualquer
deslize na dieta. E, obviamente, mães que desejavam amamentar e
persistiam. Com dieta, com perseverança, essas crianças foram
amamentadas por logo tempo e muitas delas já se curaram. Inclusive o
meu. Inclusive a que teve 10 meses de sangue oculto positivo. Inclusive
muitas outras que tinham alergias gravíssimas e cujas mães fizeram
dietas rigorosíssimas.
6) Bebê APLV, amamentado. Criança
com reação, médico “manda” suspender aleitamento e dar extensamente
hidrolisado (que sempre deve ser a 1ª opção, segundo o Consenso
Brasileiro de Alergia Alimentar, documento que deveria ser lido por
todos os que tratam de crianças alérgicas) ou fórmula de aminoácidos. A
mãe desmama uma criança doente; ela sofre, a criança, mais ainda. A
criança faz 6 meses, começa a introdução dos sólidos, mas seu organismo
não mais conhece proteínas inteiras e o resultado, ao receber o sólido,
podemos imaginar qual é... De fato, não é uma nenhuma evidência, mas o
que observamos é isso: a criança APLV amamentada pode até demorar mais
tempo a ficar assintomática, mas a médio e a longo prazo, tudo é melhor,
inclusive a tolerância aos sólidos. Continuando a historinha: a criança
faz 8 meses e começa a engatinhar... Um espetáculo de traços de todos
os alimentos no chão. A criança coloca a mão na boca... Imagine o chão
de uma festa infantil... Ah, antes mesmo de aprender a engatinhar, ainda
tem a tia com aquela boca que acabou de comer pão com manteiga direto
na bochecha do bebê... O pai que bebeu leite... O irmão, o vizinho...
Onde há mais “contaminação” pelo alérgeno? No leite da mãe ou em tudo
isso que eu disse? Olha, o que eu conheço de criança APLV desmamada e
cheia de reações mesmo em exclusividade de fórmula de aminoácidos...
Desmamou, privou a criança do LM e de tudo o que envolve a amamentação,
mas livrou a criança dos alérgenos? E nem falei de creche e escolinha.
Você acha que vão separar utensílios como fazemos em casa? Que vão
impedir que uma criança roube um biscoito da outra?
7) Em
teoria, a criança com APLV desmamada tem fórmula fornecida pelo poder
público. Tudo parece lindo e maravilhoso. Até o dia que o leite atrasa. O
leite acaba. O leite, mesmo com liminar, não sai. Não conheço uma mãe
cujo filho dependa de fórmulas especiais que nunca tenha passado por
isso. Aí, aquele desespero, claro. Junta daqui, pede dali, compra no
mercado negro, é enganada por golpistas... Conheço lugares em que as
crianças passaram meses sem receber as fórmulas.
8) Já vi
criança APLV com os mais variados sintomas, respiratórios,
dermatológicos, já vi casos graves de refluxo, otite crônica, esofagite
eosinofílica, proctite, enterocolite, hiperplasia nodular linfóide...
Algumas já desmamadas quando se juntaram a nós, outras que desmamaram
depois, mas muitas que mantiveram a amamentação, felizmente. Desmamou
porque a mãe não aguentou a dieta? Perfeito, cada um tem seu limite e
ele deve ser respeitado. Mas desmamar porque “fórmula de aminoácidos é a
solução” e o “leite materno está fazendo mal ao bebê”, isso eu não
aceito e não tem respaldo em evidências científicas... A mãe que quer
amamentar costuma lutar por isso, mas ouvir de um médico que é preciso
desmamar consegue destruir a segurança de muitas delas. Se o médico já
na consulta do diagnóstico diz: “se não melhorar com a dieta vamos
entrar com fórmulas especiais” ou “se você não aguentar a dieta”,
pronto! Lá se foi a determinação de muitas mães! Eu, com meu filho
sangrando bastante por 3 meses nunca ouvi nada disso. Se ouvisse, não me
abalaria, porque eu estava determinada. Mas muitas mães ouvem e ficam
arrasadas, fracassadas e aí tudo fracassa mesmo.
9) Os
casos que você cita que recomendou o desmame eu, obviamente, não
conheço. Não estou de forma alguma afirmando que foi um erro e não estou
te criticando, mas preciso dizer que nunca vi caso que não melhorasse
com ajuste na dieta e apoio e informação à mãe. Eu não chegaria aonde
cheguei sem o apoio das minhas queridas companheiras, muitas delas
amigas de verdade hoje em dia. Onde eu aprenderia que existe pão de
queijo sem queijo? Como eu imaginaria que tem que separar a esponja?
Como eu aventaria a hipótese de que há produtos de higiene infantis com
proteínas do leite? Xampu, lenços umedecidos, sabonete, creme... Isso
tudo e muitos, muitos outros detalhes.
10) Eu poderia escrever não apenas uma mensagem longuíssima como esta,
mas talvez um livro com tantas histórias sobre APLV, mas não dá. Deixo,
então, uma foto de mães e seus bebês APLVs amamentados. Todos mamaram
por mais de um ano, exceto dois que ainda têm menos de 3 meses. Quase
todas amamentaram por mais de 2 anos. Uma delas faz dieta de leite, soja
e glúten há mais de 2 anos, pois suas gêmeas têm APLV. Eu também estou
na montagem, no aniversário de 2 anos do meu filho, eu completando 22
meses sem leite. Ambos em dieta e felizes.
Com carinho e admiração,
Luciana Freitas
*Atualização: em 28/10/2016 o grupo atingiu 15.250 participantes.
Carta publicada
originalmente dia 12/06/2011 em
https://www.facebook.com/notes/meu-filho-%C3%A9-al%C3%A9rgico-a-leite/carta-de-uma-m%C3%A3e-aplv-a-um-pediatra/130125460401323